Anteontem, 17 de julho de 2019, morreu Andrea Camilleri, considerado um dos mais importantes escritores italianos e um grande gênio siciliano. O grande público o conhecia sobretudo pela série televisiva “Il commissario Montalbano“, inspirada em seus romances e transmitida pela RAI.
Apenas um dia depois, outro gênio italiano que nos deixou Luciano De Crescenzo, aos noventa anos de idade. Engenheiro de formação, era um homem de rara inteligência e um livro seu marcou minha vida para sempre. Trata-se da obra “Il dubbio” (A dúvida), um tascabile (livro de bolso) de pouco mais de cem páginas lançado em 1992.
Lá pelos idos de 1996 comprei o livro na já defunta Livraria Italiana, que chegou a ter duas lojas em São Paulo. Lembro-me bem daquele dia. Estava na loja da avenida Ipiranga e fui atendido pela sempre prestativa senhora que lá trabalhava. Tentei lembrar seu nome para escrever este artigo, mas não consegui. Ela era delicada e falava com bastante delicadeza. Conhecia bem o acervo da livraria. Pouco tempo depois morreu ainda relativamente jovem vitimada por uma doença grave.
Naquela época era caríssimo comprar um livro italiano importado. Tudo custava muito caro e eu era um adolescente sem mesada. Naturalmente o que já era caro ficava caríssimo. Confesso que tinha certa raiva dos donos da livraria… mal sabia eu que eram guerreiros! Enfim, pedi àquela senhora uma sugestão de um livrinho rápido e, sobretudo, “barato”. Foi então que ela me sugeriu o recém-chegado “Il dubbio” de Luciano De Crescenzo.
A capa trazia o preço: 5900 liras… o euro era ainda um objetivo distante. Todavia, o câmbio da livraria era bem especial, pois incluía os custos do transporte e dos módicos impostos de importação, que afetavam até mesmo os livros. Já havia entrado diversas vezes na livraria e raramente saía com alguma compra… eu só vagabundeava em meio às estantes e folheava as obras como se quisesse sentir a Itália que era tão distante. Quem tem menos de uns 35 anos não tem ideia do que isso significa.
Naquele dia foi diferente. Tinha algum dinheiro no bolso e era suficiente para comprar aquele “tascabile” que me havia sido sugerido pela afável senhora. Mal sabia eu que aquele livro me marcaria para sempre.
Despretensiosamente, De Crescenzo propõe ao leitor uma análise sobre grandes questões da vida humana e do universo. Ao discorrer sobre elas, de forma absolutamente deliciosa, nos faz imaginar a forma como se movimentam as engrenagens do cosmos a partir de exemplos ao mesmo tempo banais e avassaladores.
Uma passagem inesquecível estava no capítulo dedicado ao conceito do tempo. Um dos exemplos contava uma história pessoal do autor quando trabalhava no prédio onde a IBM Italia ocupava un dos andares. Era um prédio antigo e não construído para salas comerciais, tendo apenas um elevador. Com o aumento do número de escritórios e de pessoas entrando e saindo, o único elevador demorava longos minutos e as pessoas reclamavam da espera que lhes parecia interminável. A direção da IBM então cogitou que fosse construído um novo elevador, mas a burocracia da prefeitura e os custos tornavam aquela obra em uma dificílima empreitada.
De uma pessoa inesperada veio uma curiosa solução. O porteiro do prédio sugeriu que no térreo e no andar que a IBM ocupava fossem colocados grandes espelhos para que os funcionários pudessem verificar se estavam alinhados e apresentáveis. Assim, aqueles átimos de tempo que pareciam intermináveis seriam ocupados com um pouco de vaidade e a impressão da passagem do tempo seria totalmente diferente. A ideia parecia muito simplória, mas era extremamente barata e rápida. E assim foi feito. O resultado foi exatamente aquele que o porteiro previu. Assim, aquele senhor de poucas letras havia de alguma forma se projetado no centro do debate entre Henri Bergson e Albert Einstein.
Nunca mais me esqueci dessa passagem do livro, que ele revisitou num livro posterior (“Tale e quale”). Um livro aparentemente “descartável” ensinou-me de forma clara a relatividade da percepção do tempo e como os problemas podem muitas vezes ser resolvidos com medidas simples. É um exercício de análise das situações quotidianas que nunca devemos esquecer.
Luciano De Crescenzo, riposa in pace. Grazie infinite!
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