A questão da nacionalidade de ancestrais que emigraram como austríacos para o Brasil tendo origem trentina, juliana ou bassofriulana é sempre um tópico que causa muita confusão e é extremamente mal entendido pela maioria das pessoas, até por aqueles que em tese deveriam dominar o tema. Estou há muito tempo querendo escrever um artigo bastante abrangente sobre esta questão, mas hoje meu objetivo é mais breve e direto.
Se o ancestral nasceu em territórios do extinto Império Austro-Húngaro (ou antes de 1867 apenas Império Austríaco) e emigrou para o Brasil antes de 1920, ele usou um passaporte austríaco para viajar. De fato, ele era um cidadão austríaco. Todavia, com o Tratado de Saint-Germain-en-Laye de 1919 todos aqueles emigrantes que haviam saído de territórios que após o Tratado ficaram de fora das fronteiras da então recém-criada República Austríaca perderam sua nacionalidade austríaca, tornando-se apátridas, ou seja, pessoas sem nenhuma nacionalidade.
Pode parecer estranho e até ultrajante, mas se seu bisavô ou trisavô saiu da província de Trento, de Gorizia ou de Trieste – para citar três exemplos clássicos – e emigrou para o Brasil em 1905, ele efetivamente tornou-se apátrida em 16 de julho de 1920. Muito provavelmente, caso ele não tenha se naturalizado brasileiro, ele morreu apátrida. Não importa a nacionalidade que porventura constasse dos documentos brasileiros dele. Ele de iure e de facto não tinha nenhuma nacionalidade.
Portanto, esses imigrantes nascidos em antigos territórios do Império Austro-Húngaro deixaram de ser austríacos em 1920 (e muitos antes disso) e não se tornaram cidadãos italianos por “mancata opzione”, ou seja, porque não se manifestaram. E os motivos são óbvios, a maioria vivia na roça, em colonatos distantes de tudo. Eles provavelmente souberam muito tempo depois que o local de onde haviam emigrado agora fazia parte do Reino da Itália e não mais do antigo império.
Por não serem titulares da nacionalidade austríaca e nem da nacionalidade italiana, esses imigrantes não puderem transmitir nenhuma nacionalidade aos seus descendentes. Daí que a conclusão lógica é que não há direito de transmissão de cidadania a ser pleiteado, seja a austríaca, seja a italiana.
Esses emigrantes eram quase todos pertencentes ao grupo etnolinguístico italiano. Tinham nomes italianos, falavam italiano e/ou dialetos de línguas itálicas como o vêneto, o lombardo, o friulano ou o ladino reto-românico. Todavia, eles nunca foram cidadãos italianos. É por esse motivo que descendentes desses emigrantes não podem pleitear o reconhecimento da cidadania tendo em base um dante causa nascido no Império Austro-Húngaro e emigrado antes de 1920. Não é possível porque não se pode transmitir o que nunca se teve.
Com a Lei nº. 379 de 14 de dezembro de 2000, a Itália deu a oportunidade aos descendentes desses emigrantes para que solicitassem a concessão da nacionalidade italiana. Os efeitos dessa lei estiveram em vigor até 20 de dezembro de 2010. A lei, apesar de usar equivocadamente a palavra “riconoscimento“, não era uma atribuição iure sanguinis da cidadania, mas na verdade uma naturalização facilitada, pois era uma concessão do Estado com efeitos que decorriam a partir do dia seguinte à data de assinatura do ATTO DI CITTADINANZA em livro próprio.
A meu ver, como eu sempre faço questão de opinar, essa lei não deveria ter sido elaborada com um prazo. Não faz sentido impor prazos se o reconhecimento “normal” da cidadania não os tem. Contudo, dura lex, sed lex. O resultado é que pessoas que sejam apenas descendentes de emigrantes que se enquadram como ex-súditos austríacos não podem mais solicitar a concessão da cidadania italiana.
Recentemente, em setembro de 2019, com a aprovação pelo Parlamento da República da Áustria de uma emenda à lei de nacionalidade austríaca amplamente divulgada pela imprensa, muitos dos descendentes de trentinos, julianos e baixo-friulanos rapidamente se animaram pensando que tal emenda poderia de alguma forma dar-lhes a oportunidade de pleitear a nacionalidade austríaca porque no texto legal faz-se menção ao Império Austro-Húngaro. É um equívoco.
A emenda diz respeito tão somente a descendentes de cidadãos austríacos que tiveram de deixar o território da República da Áustria e de cidadãos de outros países que possuem hoje dentro de suas fronteiras territórios anteriormente pertencentes ao Império Austro-Húngaro e que tenham deixado essas regiões devido à direta perseguição feita pelo aparato de Estado nacional-socialista (nazista). As perseguições começaram de forma sistemática no fim da década de 1930. A medida afeta sobretudo os judeus perseguidos pelo nazismo que tiveram de emigrar para salvar as suas vidas.
Conclui-se, por obviedade fáctica, esta emenda não tem qualquer mínima aplicação para descendentes de trentinos, julianos e baixo-friulanos que emigraram antes de 1920, muito antes de o Partido Nacional-Socialista tomar o poder, seja na Alemanha (1933), como na Áustria (o Anschluss. a anexação da Áustria à Alemanha Nazista, deu-se em 12 de março de 1938).
A possibilidade de a Áustria abrir alguma possibilidade de conceder sua nacionalidade para descendentes de ex-súditos do Império Austro-Húngaro pertencentes ao grupo etnolinguístico italiano é muito remota. É ingênuo, dadas as atuais circunstâncias, que isso um dia venha a se tornar realidade. Portanto, tomem nota.
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