Alguns esclarecimentos necessários sobre meu artigo de 9/9/2019

Publiquei ontem um artigo intitulado “As cíclicas notícias sobre mudanças na lei de cidadania”  que discorre sobre o trecho do discurso do primeiro-ministro da Itália, Giuseppe Conte, feito na Câmara dos Deputados em ocasião do voto de confiança para a nova formação do Governo, em que ele aborda brevemente uma possível mudança na lei da cidadania. Se não leu o artigo, convido que o faça antes de prosseguir.

Compartilhei o artigo nas redes sociais e várias pessoas comentaram fazendo algumas colocações que merecem uma atenção especial. Além disso, Fabio Barbiero ver um vídeo comentando também o mesmo trecho do discurso e quero aqui oferecer um contraponto ao que ele disse.

Vou tentar ser mais didático e abordar a questão em sete tópicos. Ser breve, todavia, é uma qualidade da qual careço.

Tópico 1: “Na teoria as leis são lindas, mas na prática os políticos sempre fazem o que querem”

É bastante difícil extrair algo aproveitável de uma troca de ideias quando a outra parte demonstra concepções niilistas sobre o assunto tratado. Na Itália tal comportamento também é chamado de qualunquismo, que se manifesta numa apatia política extrema que demonstra um amplo descrédito em todo processo político, esvaziando o valor das instituições e no próprio Estado de direito.

Sem querer tocar nas origens sociológicas desses comportamentos de negação da política e de profundo descrédito das instituições, considero importante esclarecer que na Itália o ordenamento jurídico não é um joguete na mãos dos políticos. Não existe absolutamente a possibilidade de que os políticos façam o que quiserem com as leis. Repetidamente as instituições de garantia repeliram tentativas de solapar direitos. A Corte Constitucional italiana nunca demonstrou qualquer tolerância com avanços ilegítimos e arbitrários do legislador (o Parlamento) à luz dos princípios fundamentais do Estado de direito.

Portanto, não se enganem com o fácil discurso qualunquista de que está tudo podre e que se os malvados políticos quiserem estará revogada até a lei da gravidade. Não é assim que a banda toca, especialmente no Palazzo della Consulta.

Tópico 2: “Se maioria do povo italiano é contra o iure sanguinis, a lei vai ser mudada retroativamente e acabou” 

Outra falsa concepção muito comum é aquela que se apoia na tirania da maioria. Segundo esse raciocínio, se a maioria quer a maioria consegue. É uma visão intrinsecamente autoritária das relações políticas e, novamente, ignora o Estado democrático de direito, em que as instituições funcionam de modo a se contrapor de maneira saudável usando os freios e contrapesos democráticos. É a nossa garantia de respeito às leis e à liberdade.

Não é apenas porque a maioria do povo italiano considera que determinado dispositivo legal não lhe agrada que qualquer mudança será permitida. Mesmo valendo para o futuro, qualquer lei aprovada deve enfrentar limitações constitucionais. E para isso não é necessário que tudo esteja rigorosamente previsto ipsis litteris na Carta Magna. A maioria dos conceitos são depreendidos das balizas constitucionais, não sendo diretamente previstos por um artigo ou parágrafo.

Não é porque a cidadania italiana não é matéria constitucional que as normas que a regulam podem ser modificadas ao bel-prazer do legislador, nem para situações que ocorrerão no futuro e muito menos para aquelas já ocorridas no passado.

Tópico 3: A sucessão das leis no tempo (art. 4 CC 1865, art. 1 Legge 555/1912 e art. 1 Legge 91/1992)

Em minhas palestras sobre cidadania italiana faço questão de dar um panorama histórico das leis e das normas que regulam e regularam a cidadania italiana desde a criação do Estado italiano moderno há 158 anos. Essa perspectiva histórica é essencial para que entendamos a sucessão das leis no tempo e porque isso importa em qualquer análise sobre futuras modificações nas leis de cidadania.

A esse panorama histórico soma-se o conceito do ius superveniens que determina que relações surgidas durante o vigor de uma lei anterior deverão ser por ela reguladas mesmo que seus efeitos já se verifiquem durante a vigência de uma lei promulgada posteriormente.

Assim, um indivíduo nascido em 1910 no Brasil filho de um italiano é considerado italiano desde o seu nascimento porque assim determina o artigo 4º. do Código Civil de 1865. E o filho deste filho (neto do italiano emigrado) nascido em 1950 é considerado italiano desde o seu nascimento porque assim determina o artigo 1º. da Lei 555 de 1912. E um jovem nascido em 1993 bisneto daquele italiano que emigrou para o Brasil é italiano desde o seu nascimento porque assim determina o artigo 1º. da Lei 91 de 1992.

Portanto, numa linha de ascendência contendo três gerações, cada um deles – filho, neto e bisneto – é italiano porque três normativas diferentes assim determinaram. Cada norma disciplinou a atribuição da nacionalidade durante a sua vigência. Uma pessoa nascida em 1980 e que solicite o reconhecimento da cidadania italiana hoje verá seu direito formalmente reconhecido à luz do artigo 1º. da Lei 555 de 1912 e não do artigo 1º. da Lei 91 de 1992, mesmo que a primeira tenha sido revogada pela segunda. A eficácia da lei no seu tempo de vigência permanece inalterada.

Isso, é importante ressaltar, se aplica para atos jurídicos já concluídos no tempo. A cidadania italiana iure sanguinis assenta-se basicamente sobre dois fatos constitutivos: o nascimento e o reconhecimento daquele que transmite a nacionalidade durante a menoridade do(a) filho(a). Ambos os fatos já ocorreram e deram origem a um ato jurídico já terminado. A pessoa nasceu italiana. Ponto. O reconhecimento da cidadania assim se denomina porque é um status que já existe e que será apenas reconhecido pelo Estado a partir da documentação apresentada.

A cidadania originária, diferentemente da derivada, é um ato já finalizado no passado e não pode ser regulado por uma norma que venha a ser criada no futuro. É a lei em vigor durante sua constituição como ato jurídico que é chamada a atuar.

É por isso que não tem cabimento o argumento de que o “Decreto Salvini” retroagiu no tempo para instituir o requisito do certificado B1 de língua italiana para aqueles que querem se naturalizar. E tal argumento não tem sentido porque mistura dois conceitos totalmente distintos no tema da nacionalidade. Um é a concessão da nacionalidade, que é um ato discricionário do Estado e sujeito a alterações a qualquer momento. Outro é a atribuição da nacionalidade que opera por simples dispositivo legal, ou seja, a lei manda atribuir a nacionalidade a um indivíduo que possua o requisito por ela previsto.

E como dito antes, a lei que determina a atribuição da nacionalidade é aquela que estava em vigor quando a pessoa nasceu. O principal fato constitutivo da cidadania iure sanguinis é o nascimento. O fio do meu raciocínio continua no próximo tópico.

Tópico 4: “Ah, talvez não façam a lei retroagir, mas podem criar novos requisitos como um teste linguístico e/ou cultural”

Muitos até “aceitam” que a lei não possa retroagir no tempo para, por exemplo, limitar gerações, mas acham possível que o Parlamento crie requisitos para o reconhecimento da cidadania, como um teste de proficiência em língua italiana e/ou um teste de conhecimento gerais sobre a Itália.

E é exatamente esse o argumento levantado pelo Fabio Barbiero no vídeo de hoje (10/9/2019) publicado em seu canal do YouTube. Por volta do minuto 5:00 ele expõe os argumentos que segundo ele tornaria possível estabelecer requisitos linguísticos e culturais. Ele não apenas diz que seria possível, mas também enumera as eventuais vantagens de se ter cidadãos reconhecidos que dominam a língua italiana e conheçam minimamente a Itália.

Eu sempre disse que não podemos nos resignar a ser apenas “italianos de passaporte”, ou seja, cidadãos italianos apenas nominalmente, sem sermos culturalmente italianos e sem dominar minimamente a língua italiana e conhecer o que é a Itália. É péssimo para todos nós que a cidadania italiana seja vista apenas como um passaporte que no fim se torna uma espécie de carteirinha do “Clube Europa de Vantagens”.

Dito isso, é preciso retomar o conceito da sucessão das leis no tempo e como opera a eficácia das normas durante atos jurídicos acontecidos durante sua vigência.

Não é possível impor requisitos a situações acabadas e já reguladas por outras normas vigentes no passado.

artigo 4º. do Código Civil de 1865, o artigo 1º. da Lei 555 de 1912 e o artigo 1º. da Lei 91 de 1992 previram apenas um requisito para que a lei atribuísse a cidadania a um indivíduo: ser filho de um italiano (ou de uma italiana como determinou a Lei 123 de 1983).

Portanto, as leis que atribuíram a nacionalidade italiana aos filhos de italianos nunca previram nenhum requisito além do nascimento e do necessário reconhecimento da filiação por parte do transmissor da cidadania durante a menoridade. Ademais, mesmo os cidadãos nascidos na Itália de pais italianos são italianos pelas exatas mesmas leis que declararam italianos os nascidos no exterior.

Achar conveniente que os aspirantes ao reconhecimento falem italiano é algo natural, mas novos requisitos só podem regular atos jurídicos que vão acontecer no futuro. Portanto, não é possível impor requisitos de qualquer espécie para o reconhecimento da cidadania iure sanguinis. Isto é um fato e nossa opinião pessoal sobre a conveniência disso ou daquilo é irrelevante.

Tópico 5: “Vários países europeus exigem um teste da língua nacional e de conhecimentos gerais para o reconhecimento da cidadania iure sanguinis

Este é mais um mito do mundo da cidadania. Um monte de gente e vários políticos italianos disparam essa cavolata a torto e a direito sem medo de ser feliz. Quando são convidados a demonstrar o fundamento do que dizem usam evasivas e justificam com algo semelhante a “mas é assim mesmo e ponto, vai você estudar”.

A verdade é o exato contrário: nenhum país exige testes linguísticos e/ou culturais para o reconhecimento da sua nacionalidade originária.

Infelizmente, as pessoas que disparam essas coisas ao vento não entendem nada de leis de nacionalidade. Confundem conceitos básicos, como concessão e atribuição, e – sobretudo – não têm a menor ideia do que seja “naturalização facilitada”. Um caso conhecido no mundo italiano de naturalização facilitada é aquele previsto pela Lei 379/2000 até dezembro de 2010, conhecido vulgarmente como “cidadania trentina” (terminologia imprópria porque o dispositivo da lei não afetava apenas trentinos, mas também os julianos e um pequeno número de friulanos).

Para casos de naturalização facilitada, o legislador sempre estabelece algum tipo de requisito. No caso da Lei 379/2000 o requisito era que o requerente pertencesse ao grupo étnico-linguístico italiano, daí a necessidade da inscrição a um Círculo Trentino ou Juliano.

A lei da cidadania em vigor prevê duas possibilidades de naturalização facilitada para descendentes de italianos cujo ancestral perdeu a cidadania italiana antes do nascimento de seus filhos. Tais possibilidades estão previstas no artigo 4 (comma 1) e no artigo 9 (comma 1, lettera a). Esses dois artigos podem ser modificados a qualquer momento e novos requisitos podem ser introduzidos sem nenhum problema. Os dispositivos podem até mesmo ser revogados. Todos aqueles que não solicitaram a concessão da nacionalidade perderão a possibilidade de fazê-lo a partir da entrada em vigor da lei.

Por isso, quando há naturalização facilitada falamos de concessão da cidadania, cujos dispositivos podem ser modificados ou revogados a qualquer momento e todos os que não se manifestaram a tempo perdem a possibilidade de requerer a concessão da cidadania que antes tinham.

A Alemanha, para ficar em apenas um exemplo europeu, não exige absolutamente nenhum teste linguístico e/ou cultural para a atribuição iure sanguinis de sua nacionalidade. É mentira daqueles que dizem o contrário. O que se confunde aí é a naturalização facilitada para descendentes que não se encaixam em outros requisitos de lei já anteriormente previstos pelas normativas alemãs que vigoraram no passado. Na naturalização facilitada para algumas categorias de descendentes existem requisitos linguísticos para aqueles que solicitam a concessão da nacionalidade, mas é importante que fique claro que não se trata aí de reconhecimento ope legis, ou seja, de atribuição originária da nacionalidade.

Tópico 6: “A esquerda italiana odeia os descendentes, eles são contra o ius sanguinis” 

Como já afirmei diversas vezes, nenhum partido ou formação política italiana fecha questão quanto à cidadania ius sanguinis. Nem mesmo partido de direita ou extrema-direita se declararam abertamente favoráveis programaticamente à defesa e manutenção do ius sanguinis. É obtuso levar a polarização político-ideológica direita vs. esquerda para o tema da cidadania iure sanguinis.

De fato a esquerda considera, de maneira geral, que o ius sanguinis puro é uma forma de transmissão da nacionalidade ligada a critérios étnicos que não fazem mais sentido no mundo atual. E essa concepção tem fundamento. Digo isso confortavelmente porque me posiciono ideologicamente à centro-direita. O mundo tem hoje uma hora dinâmica e a sociedade italiana mudou.

Defenderei sempre o respeito absoluto do princípio da irretroatividade da lei tal qual previsto pelo Código Civil italiano atual e pelo anteriorTodavia, é claro que a lei de cidadania atual não se encaixa mais nas necessidades da sociedade italiana.

Quanto aos partidos italianos, infelizmente o tema da cidadania italiana é dominado somente pela discussão do ius soli, sem a devida atenção à questão do ius sanguinis, que é algo curiosamente pouco conhecido pela sociedade italiana em geral. Mesmo políticos de destaque e até professores universitários não entendem muito bem “essa história de um bisneto de italiano ser italiano desde o nascimento”. Até muitos “juristas”, pasmem, acham que os descendentes têm a cidadania “concedida” pelo artigo 4 ou pelo artigo 9 da Lei 91/1992. Aliás, eu tenho uma leve desconfiança que o nosso primeiro-ministro Giuseppe Conte também está nesse grupo…

Tópico 7: “O ius soli vem aí! Socorro, vão invadir a Itália. O país vai acabar!”

Eu não sou favorável ao ius soli puro, nem mesmo no Brasil. O simples fato de nascer num determinado país jamais deveria, nos tempos atuais, ser o único fato determinante suficiente para atribuição automática da cidadania. Em países onde vige o ius soli, como acontece em praticamente todos os países americanos, o simples fato de vir à luz em determinado território já atribui a cidadania ao bebê. E isso ocorre mesmo que este bebê passe apenas alguns dias naquele território e depois vá para o país de origem dos pais e nunca mais volte ao local onde nasceu.

Atualmente isso carece completamente de sentido. No passado fazia sentido povoar rapidamente grandes territórios com baixíssima densidade demográfica. Hoje não mais, mas isso é outra discussão. Não considero o ius soli puro adequado ao Brasil e muito menos à Itália.

Todavia, para mim é óbvio que filhos de estrangeiros em situação legal na Itália há um bom número de anos, nascidos e/ou crescidos em território italiano, que tenham completado pelo menos um ciclo escolar demonstrando integração à comunidade nacional, merecem ser reconhecidos cidadãos italianos antes de atingirem a maioridade. Este é o chamado ius culturae. É o direito à cidadania italiana determinado pela pertença cultural.

Se um jovem estrangeiro reside legalmente na Itália e completou o ciclo de cinco anos da scuola elementare, fala perfeitamente a língua italiana e está integrado ao tecido social italiano, ele merece ter a cidadania italiana concedida ainda no início da sua adolescência. Esta não é uma questão de ideologia, mas uma questão de humanidade, empatia e bom senso.

Fazer que um jovem nascido e/ou crescido na Itália, que muitas vezes só fala a língua italiana e nunca saiu da Itália, tenha de esperar até o 18 anos para obter a nacionalidade não é algo digno de uma sociedade moderna e acolhedora. Isso só cria ressentimentos desnecessários.

ius culturae é isso. Nada tem a ver com testes linguísticos para descendentes de italianos no exterior como alguns erroneamente pensam. Fazer uma nova lei que preveja a concessão da cidadania a menores filhos de estrangeiros pelo princípio do ius culturae é um passo civilizacional adiante.

 


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