A cidadania italiana é transmitida sempre de pai (ou mãe) para filho(a). É isso que determinam as leis que regulam a matéria desde o Código civil italiano de 1865. Ninguém reconhece a cidadania italiana por ser neto ou bisneto de italiano. Se a pessoa obteve ou pode obter o reconhecimento da cidadania italiana é porque o pai (ou a mãe) é cidadão italiano, mesmo que este pai ou esta mãe não sejam formalmente reconhecidos (cidadãos italianos de facto), pois são cidadãos italianos de iure desde que nasceram.
A transmissão da cidadania italiana não salta gerações, como alguns erroneamente imaginam. Para isso é preciso entender bem os conceitos de de iure (de direito) e de facto (de fato).
Como eu já abordei em outros artigos, há dois fatos constitutivos que permitem a transmissão da cidadania italiana de um pai para um filho. São eles:
- O nascimento com vida.
- O estabelecimento do vínculo de filiação entre pai e filho.
Portanto, o estabelecimento do vínculo da filiação deve se dar de acordo com as leis italianas vigentes à época do nascimento. A lei estrangeira do local onde a criança nasceu não tem eficácia nenhuma em trâmites administrativos de reconhecimento da cidadania. Embora seja uma obviedade, é importante lembrar que em reconhecimentos de cidadania por via judicial, o juiz tem uma larga margem de interpretação para poder “temperar” uma dada situação ocorrida no passada levando em consideração a conjuntura da época.
Isto posto, como fica então a questão da transmissão da cidadania italiana quando não foi nem o pai e nem a mãe que declararam o nascimento do filho, mas uma terceira pessoa? A resposta no âmbito administrativo está no código civil italiano vigente à época do nascimento desse filho.
Antes de continuar, quero estabelecer quatro premissas:
PREMISSA 1: Todo arcabouço legal que existe, esteja atualmente em vigor ou não, relacionado à cidadania italiana não foi elaborado pensando em reconstruções históricas da cidadania, mas sim à transmissão direta de pais para filhos. O legislador (isto é, os parlamentares que elaboraram as leis em 1865, 1912 e 1992) e os funcionários que tiveram a função de interpretar a “casística” utilizando várias outras normativas afins não levaram em conta a “onda da cidadania italiana” que viria a se instaurar a partir da década de 1990 fazendo com que milhares de bisnetos e trinetos passassem a reivindicar um direito que estava “adormecido”. É por essa característica básica das normativas da cidadania italiana que um vasto número de questões nunca foi resolvido de forma definitiva, deixando margem às mais diferentes interpretações.
PREMISSA 2: Quando falamos em cidadania italiana é bom que todos entendam claramente um fato: aplica-se a lei italiana. É inútil dizer “mas no Brasil vale”, “mas nunca ninguém questionou se fulano era filho de sicrano” etc. etc. Em trâmites administrativos de reconhecimento da cidadania italiana devem ser aplicados sempre os dispositivos previstos pelas leis italianas.
PREMISSA 3: Eu abordo neste artigo a aplicação da normativa em sede administrativa. Na sede judicial, como eu disse mais acima, há espaço para justificativas, arrazoados e decisões que na esfera administrativa não cabem.
PREMISSA 4: Na Itália há quase oito mil municípios, portanto, são quase oito mil locais que têm a competência legal de reconhecer a cidadania italiana de um descendente. Na prática, isso significa que há interpretações de todos os tipos e também erros crassos cometidos a todo momento. Há municípios que reconhecem cidadania até apresentando o pedigree de um mastim napolitano.
Feitas as premissas, passemos a o tema: filhos de pais casados, mas cujo nascimento foi declarado por um terceiro. O que afinal diz a lei italiana?
A lei italiana sempre foi clara quanto a isso. O artigo 373 do Codice civile de 1865 determina: “A declaração de nascimento deve ser feita pelo pai ou por um seu procurador especial, na falta do doutor de medicina e cirurgia, ou pela parteira, ou por qualquer outra pessoa que tenha assistido ao parto, ou se a puérpera estava fora de sua costumeira habitação, pelo chefe da família, ou pelo oficial delegado pelo estabelecimento no qual teve lugar o parto. A declaração pode ser feita também pela mãe ou por pessoa munida de seu mandato especial”.
Tal previsão foi reiterada pelo Ordinamento dello stato civile de 1939 (Art. 70) e depois pelo atual Ordinamento dello stato civile de 2000 (Art. 30). Gualtiero Sighele, Procurador do Rei e autor de um livro sobre o Ordinamento dello stato civile (página 115, ver imagem abaixo) escreveu: “A declaração de nascimento, quando não for feita por pessoa taxativamente indicada pela lei, é válida no que concerne ao fato do nascimento e da identidade da criança, mas não serve como prova de filiação”.
Portanto, pela lei italiana um terceiro só pode declarar o parto caso tenha uma procuração do pai ou da mãe ou, se na ausência do pai, tenha assistido ao parto e tal ocorrência fique clara no conteúdo do registro de nascimento. Vejam na imagem acima à direita um registro de nascimento feito na Itália em 1896 no qual o avô paterno declara o nascimento de uma criança filha de pais casados. Notem a justificativa redigida de maneira clara e que respeita o que determina o Art. 373 do Codice civile de 1865.
No Brasil, contudo, na prática do dia-a-dia, era de uso comum que um terceiro declarasse o nascimento de uma criança sem que houvesse qualquer indicação no assento de nascimento os motivos do impedimento do pai a fazer a declaração de nascimento. Sendo assim, crianças filhas de pais casados foram registradas por tios e avós, pelo capataz da fazenda onde o pai trabalhava, pelo dono da fazenda, por um compadre do pai, pelo “inspetor de quarteirão” etc.
Algumas pessoas apressadamente trazem à discussão os artigos 232 e 239 do atual Código civil italiano de 1942, todavia é importante salientar que eles não dizem respeito a filhos declarados por terceiro, mas sim a outras situações bastante diferentes em sua natureza.
Na verdade, se outros dispositivos da lei italiana fossem aplicados a nascimentos no exterior, como o prazo de cinco dias a partir do parto (depois disso era necessária autorização judicial) como previsto pelo Codice civile de 1865, muitas pessoas veriam seu direito à cidadania consideravelmente limitado na via administrativa.
Outros artigos importantes do Código civil atual referentes à questão da filiação são o Art. 236 e o Art. 237 (“possesso di stato”), mas que não encontram – no meu entendimento – aplicabilidade na via administrativa.
E então como ficamos? O que dizem as normativas italianas sobre esse tipo de situação ocorrida no exterior? Não dizem nada. E o que diz o Ministero dell’Interno? Não diz nada. Existe alguma circular sobre o tema? Não existe. O “Massimario dello stato civile” de 2012 aborda o tema? Não.
Até recentemente sempre se aceitou como válido, talvez por liberalidade, qualquer registro de nascimento como prova de filiação e, portanto, de transmissão da nacionalidade italiana, desde que os pais fossem casados anteriormente ao nascimento do filho.
Todavia, desde 2018 alguns consulados, nomeadamente o de Recife, começaram a rejeitar pedidos de cidadania em que situações como a descrita neste artigo ocorressem, alegando por escrito (o que é um dever do consulado) que não houve estabelecimento legal de filiação segundo o ordenamento jurídico italiano. Do ponto de vista estritamente formal esta interpretação do consulado está correta.
Essa interpretação vai se estender a outros consulados? Não sei. Será abandonada pelo consulado de Recife? Não sei. Já indaguei e segundo me foi informado a interpretação foi sustentada pela Embaixada. O Ministero dell’Interno vai se pronunciar sobre isso? Talvez, mas duvido.
Portanto, para concluir, não há absolutamente nenhum trecho da legislação italiana que indique que qualquer pessoa pode declarar o nascimento do filho desde que os pais sejam casados, muito pelo contrário, como expus com os textos legais acima. Vamos, então, aguardar alguma resposta oficial ou alguma decisão advinda do ajuizamento de algum caso.
Gostou? Deixe seu comentário: